sábado, agosto 29, 2009

Ecdise Metafórica

"Toda reforma interior e toda mudança para melhor dependem exclusivamente da aplicação do nosso próprio esforço." (Immanuel Kant)

O sol se pôra, lenta e gradativamente, enquanto Sirufa, uma habilidosa, porém pequeno caranguejo, dirigia-se ao seu “porto seguro”... O dia fora longo e pesaroso, pois, como de costume, tivera sido alvo de chateações e infortúnios desconcertantes. Não bastasse o fato de sentir-se só, a miúda crustáceo ainda tinha de suportar chacotas e piadinhas infames.
Sirufa, como todo animal que se preza, tentava ignorar os comentários e deboches que os demais “nutriam” ao seu respeito, mas constantemente, sempre que o sol começava a se esconder, um sentimento de angústia e incertezas a assolava... Ela admitia para si mesma que, embora diferente dos demais, não era inferior. A dura carapaça, as numerosas patas, a forma peculiar como se movimentava... Todos a tinham como uma estranha. “Mas o que é ser ‘normal’?”, pergunta-se momentaneamente, em vão, a si mesma.
Enquanto caminhava, desengonçada, tropeçou num objeto estranho... Era um “troço” de formato esquisito, com ambas as extremidades pontiagudas. Curiosamente, possuía certa curvatura e flutuava. Este último detalhe só se tornou perceptível porque uma onda alcançara o objeto, levando-o consigo ao mar. A triste caranguejo ficou a observá-lo enquanto, de modo lento, ele desaparecia no horizonte... Neste mesmo momento, Sirufa notara a primeira estrela no céu daquela que seria, como de costume, mais uma angustiante noite. Continuara a andar – só que agora um pouco mais depressa – até encontrar sua casa, um lindo e bem planejado buraco à beira mar. Entrara e, prontamente, pôs-se a deitar. Não queria continuar lembrando das insatisfações daquele penoso dia. Deitara e, sem que tivesse como notar, adormecera... Gostosa e profundamente, dormira – como há muito não fizera.
Fora despertada, na manhã seguinte, por um fino e penetrante raio de sol. Sentia-se, estranhamente, bem. Por quê? Era incapaz de explicar. Saíra para “respirar ar fresco” e assustou-se: em frente à sua casa encontrava-se parado uma forma estranha... Era feita de resinas e fibra de vidro. Trava-se, indiscutivelmente, da mesma coisa que vira no último entardecer. Só que, pela pouca luz do dia anterior, não percebera o quão colorido e belo era o objeto. Como parara ali? Quem o trouxe? O mar não o havia levado? E prontamente percebeu que, para tais questionamentos, não encontraria respostas...
Sirufa, instintivamente, olhou para o lado e, no mesmo momento, avistou Carangurfe, um amigo de quem gostava muito, mas que pouco via, pois morava no mangue. Esfregou apressadamente os olhos para ter certeza de que não se tratava de uma miragem e, confirmando a suspeita, correu-lhe ao encontro:
__ Gurfe, é mesmo você? – Perguntara, ofegante, Sirufa.
­­__Claro, gatinha... Em carne, patas e muita queratina. – Brincou o descolado caranguejo.
Sem titubearem, abraçaram-se profusamente com aqueles seus cinco pares de patas cada um, tornando-os um emaranhado de uma figura irreconhecível e, por conseguinte, indescritível. Ali ficaram conversando por mais alguns minutos, até Carangurfe declarar:

__Estou me mudando para cá. O mangue ficou “pegajoso” demais . Comprei um modesto “buraco” a três coqueiros daqui e pretendo viver de modo diferente.
Sirufa mal acreditava no que ouvia... Gaguejando, balbuciou:
­­__Is - isso é algum ti- tipo de piada?
­­__Não, guria... Sou metido a engraçadinho, mas agora falo sério.
Sirufa sentia-se extasiada e, rapidamente, convidou o amigo para fazer-lhe companhia no café.
Ao passarem pela porta, o amigo recém-chegado observara o utensílio parado junto à entrada e sorriu de maneira insinuativa.
O desjejum fora apetitoso e bastante variado... Degustaram toda a espécie de resíduo orgânico, devidamente selecionado pela anfitriã.
Quando terminaram, o visitante fez elogios à alimentação e acrescentou:
­­__Se surfar tão bem quanto é talentosa para trabalhos manuais, tornar-se-á uma grande atleta.
Apática, Sifufa acrescentou:
­­__Sur... o quê? Do que está falando?
Carangurfe sorriu e, em seguida, acrescentou:
__Vi aquela bela prancha lá fora e, como há muito não nos vemos, achei que se tornara uma surfista. Pela sua reação, equivoquei-me!
Transtornada, a crustáceo miúda confidenciou:
­­__Para ser sincera, nem sabia como se chamava aquele objeto. É assim que o denominam? “Prancha”? (Carangurfe acenou positivamente com a cabeça e Sirufa continuou) Estranhamente ela apareceu na porta de casa hoje de manhã depois que, ontem, a vi sendo levado pelas ondas rumo ao infinito. Não sei nem por que nem como, mas ao acordar ela estava aí...
__Sabe Siru – falava, agora, o jovial caranguejo – ficamos muito tempo sem nos ver... E acho que muita coisa aconteceu nesse período (Sirufa sorrira). Para me sustentar e, principalmente, por ter descoberto o quão prazeroso é surfar, tornei-me um especialista. Trenei grandes nomes do esporte como: Kelly Slaterguejo, Sofia Crustáceonovich e Andy Ironsiri.
Sirufa já ouvira muitas vezes esses nomes, mas sem dar muita atenção... Inclinou-se sobre as dez patas demonstrando interesse e ouvira, por mais de três horas, a história do surfe e as conquistas do velho amigo.
No final da manhã, sentia-se eufórica... Interessara-se em demasia pela prática e, impulsiva, perguntou de modo estridente:
­­__Você me ensinaria?
E Carangurfe, de sorriso nos lábios, arrematou:
­­__No fundo, no fundo sabia que minha mudança transformaria muita coisa. – E, após alguns segundos (o que a Sirufa parecera uma eternidade), confirmou: É claro que sim, minha cara!
Abraçaram-se da mesma maneira esquisita com que o fizeram mais cedo e, como se lessem o pensamento um do outro, digiram-se à saída.
Sifura, mais apressadamente, correra rumo ao objeto que, agora, conhecia. Admirou-o por alguns segundos; pegou-o nas patas; pensou nos acontecimentos da noite passada e concluiu consigo mesma: “sou uma sonhadora. Acredito que, como faço com esta, poderei, de hoje em diante, sempre carregar e utilizar bem as ‘pranchas’ da vida”.
Dirigiu-se ao mar onde, neste momento, Carangurfe já a esperava. Recebeu, com a curiosidade e expectativas de um “sirizinho”, as primeiras instruções e, sem importar com aqueles que a observavam – e, em geral, faziam-na motivo de escárnio – pôs-se de pé na frágil tábua e remou... Ao tentar se equilibrar pela primeira vez, como era de se esperar, não obteve muito sucesso. Aventurou-se em mais sete ou oito tentativas até sentir a gostosa sensação da brisa batendo contra sua face e cabelos. Aquela experiência fora efêmera e inusitada, mas deliciosa. Ao perder o equilíbrio e cair no mar, Sirufa entendera que aquele seria, para ela, um novo estilo de vida, por meio do qual libertar-se-ia de todos os dissabores e rótulos com os quais estava acostumada a conviver.
Treinou mais voraz e dedicadamente ao longo da semana, pesquisando tudo o que podia ser útil a respeito do surfe. E assim prosseguia: conciliando teoria e prática da maneira mais proveitosa possível.
Após alguns meses de treinamento intenso, era capaz de se considerar diferente... Não se tratava de uma mudança física, mas interior. Era a mesma, entretanto sentia-se mais forte e segura. Levantara disposta e, portanto, encaminhou-se para o mar, para esperar as ondas. Remou o mais longe que conseguiu e se firmou na prancha. Momentaneamente, percebera que uma bela onda se formara e, com os pés firmes, onda a onda ela escrevia poesia sobre a água. Eram escritos tão únicos e de tão perfeita harmonia que o que ficava na espuma não se podia apagar: era a própria grafia do poema do mar.
Sirufa sentia-se bem... Enquanto saía do mar, refletia sobre o seu passado. O surfe, que nunca praticara ou conhecera, era agora seu conhecido. Há muito que freqüentava a beira do mar, admirando horizontes amplos... Estivera sempre em movimento e emitindo sons e o esporte, agora, surgira para “dar novo rumo” à sua história.
Com o passar dos anos, inscrevera-se em campeonatos... Perdera alguns, ganhara outros... Sorrira, chorara; frustara-se, vencera...
Agora, contudo, via-se diante de uma situação complicada: tinha de se mudar. “Expandir” seus horizontes; crescer. A necessidade faria com que Sirufa se afastasse do mar, porém com a certeza de que mesmo não o vendo, sua existência seria onipresente. Sons, imagens, cheiros e movimento eternos. Adorava o mar! Longe dele, veria surfistas na água ou fora dela e sentir-se-ia cúmplice do seu prazer. Seguiria seu caminho procurando novas ondas. Novos desafios. Como o pequenino crustáceo sentado olhando o mar e manobras de surfistas mais experientes, sonharia, observaria e anotaria, ainda que mentalmente, o material para novas descobertas.
Àquela incomum crustáceo far-se-ia impossível elucidar com perfeição o que era o surfe. Diante dessa enunciação, a tristeza seria inevitável. No entanto, contrariando o bom senso, ficaria repleta de alegria. Afinal, o esporte era algo místico e de atmosfera contemplativa; de movimento inenarrável. Uma composição híbrida de sensações insólitas... Tinha-o como genial e enigmático. A bordo de um bloco de resina e poliuretano (materiais estes que já conhecia bem), perceberia emoções que se multiplicam incessantemente. Imaginava, naquele instante, o momento mágico que se alinha ao movimento da onda, comparado a uma excitação explosiva repleta de suavidade. Paradoxal, entretanto prazeroso...
Cogitava que seus “acusadores” – aqueles que a julgavam pela aparência – a teriam como um “forasteiro polinésio”, derramando endorfina por onde passava. Contudo, consolava-se entendendo que brotar e derramar essa sensação de volúpia traria um grande sentido à sua vida.
Seu rosto, agora descontraído, era ostentado por uma felicidade inexplicável, algo que minimamente um simples andante poderia arriscar-se a dizer: “ela está de zombaria, de que ele tanto sorri?”. “Desculpe-me, mas essa bem-aventurança é para poucos” – respondia-se internamente.
Sirufa, neste instante, encontra-se num novo habitat. Tudo é conturbado e agitado, todavia, num instante, tudo se cala. Fecha os olhos e pode ver: água e céu. No meio disso, a pequena se encontra com uma consciência palpitante. Então, rema para a onda e vai em velocidade espectral rumo à viajem no tempo. Retorna ao ponto onde pela primeira vez deu por si... Surfa e, em seguida, mergulha no mar, depois de se encontrar.

4 comentários:

  1. Eu identifiquei com a Siru. E amei-a por isso. Quantos de nós não vivemos mesmo a enxergar "objetos" no escuro e, sem perceber, o quanto eles valem... E mais, vivemos sem sermos nós mesmos, sem nos achar. Felizes os que conseguem encontrar esse caminho, de volta pra si mesmo. Obrigada pela reflexão tão prazerosa, Du!

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  2. "Felizes os que conseguem encontrar", durante esse árduo percurso, pessoas lindas que o auxiliem no trajeto "de volta pra si mesmo". Obrigado por contribuir para que eu persista na reflexão, Cris!

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  3. ...
    Impressionante como vc une a realidade com o 'sonho'...

    Não sei dizer, mas seu texto é uma delícia!!
    ^^
    ♥, um beijo!

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  4. A parte do 'sonho' é culpa de pessoas como você, que de tão 'completas', parecem irreais.

    Obrigado por incentivar a fantasia!

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